A Marvada Carne
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Brasil 1985 ı cor ı 77min |
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Dire[c]ção | André Klotzel | |
Elenco | Fernanda Torres Adilson Barros Regina Casé Dionísio Azevedo Chiquinho Brandão Tio Celso Henrique Lisboa Lucélia Maquiavelli Geny Prado Paco Sanches Tinoco Tonico Nelson Triunfo |
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Roteiro/Guião | André Klotzel Carlos Alberto Sofredini |
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Género | comédia | |
Idioma | português | |
IMDB |
A Marvada Carne é um filme de 1985, dirigido por André Klotzel e estrelado por Fernanda Torres, Adilson Barros e Regina Casé. Ganhou onze prêmios no Festival de Gramado, no mesmo ano em que foi lançado, incluindo Melhor Filme pelo Júri Oficial e pelo Júri Popular. A Marvada Carne é uma comédia que mostra as hilariantes aventuras de Carula (Fernanda Torres, num papel inesquecível), uma garota simples, do interior, que tem um grande sonho na vida: se casar. E para isso ela está disposta a tudo.
Nhô Quim vive lá nos cafundós em companhia do cachorro e da cabra de estimação. Aquela vidinha besta no meio do mato não dá pé e ele resolve cair no mundo e procurar a solução para duas questões que o incomodam: arranjar uma boa moça para o casório e comer a tal carne de boi, um desejo que fica ruminando sem parar dentro dele. Nas suas andaças Nhô Quim vai dar na casa de Nhô Totó, cuja filha está em conflito com Santo Antônio, que não anda colaborando para ela arranjar um bom marido. E logo Nhô Quim descobre que o pai da moça tem um boi reservado para a ocasião do casamento da filha. Será este o momento para Nhô Quim realizar seus dois maiores desejos?
Índice |
[editar] Análise
A análise que se segue foi escrita por Dilson Fernandes em livreto aberto, publicado em Vitória da Conquista, com fins de colaboração para o processo seletivo do Vestibular UESB 2007.
[editar] O Filme
O filme é remessivo a um tempo perdido nalguma reviravolta de um passado pretérito, de onde vieram os caboclos paulistanos, que se ramificaram pelas zonas limítrofes de Minas Gerais, Mato Grosso, Paraná, Goiás e, em pequena parte, Rio de Janeiro. Esse povo proveio basicamente da mistura do bandeirante com o índio, e caracteriza um dos mais marcantes tipos do homem rural brasileiro: o caipira. Geralmente o termo é associado à pessoa de hábitos incivilizados. O que não é verdade. Tal preconceito é explicável historicamente: No início e em meados do século XX, com a implementação de políticas que priorizam a urbanização e a industrialização, o caipira foi o protótipo caricato do entrave do progresso, isto é, um sujeito atrasado e inoportuno que precisava ser superado, por estar apegado a uma produção rural rudimentar de subsistência. (É sabido que a caricatura pretende uma deformação deliberada do original, com o propósito jocoso. É um recurso depreciativo que desnuda as insuficiências do outro, ridicularizando-o). Desse modo, a imagem do Jeca Tatu, do Lobato (1914), restabelecida por Mazzaropi (1959), foi vinculada à idéia de exclusão e zombaria, numa afirmação incisiva do seu não-pertencimento à modernidade. Um outro equívoco de compreensão do caipira é traçando-lhe um caminho inverso, e inserindo-o num contexto “modernoso”. Esta inautenticidade é patente na propagada música sertaneja, que são meras imitações do country norte-americano. (PAES, 1985, p.252) Tal produção, embora cite, por vezes, a vida do campo, é feita por autores “urbanizados” e não visa preferencialmente o ouvindo do interior. São, pois, uma “falsidade de raiz”. Assim, distante da anedota sarcástica do Jeca Tatu e do ornamento fútil do Jeca Total, André Klotzel transpôs dignamente para o cinema o universo caipira com o premiadíssimo A Marvada Carne, de 1985.
[editar] O título
Aspectos lingüísticos, psicanalíticos e filosóficos
Duas considerações subjacentes que ratificam a pureza e a profundidade desse épico: 1- Nota-se pela grafia do título, o destaque para a principal característica do linguajar caipira: o erre retroflexo presente em marvada e em carne, assinalando a existência de um quase dialeto. Na primeira palavra, destaca-se a qualidade mórfica (substituição do ele pelo erre), e na segunda, a fônica (pronúncia mastigada do erre). Esse fenômeno lingüístico pode ser compreendido (ILARI & BASSO, 2006, p.152), ou como conseqüência da mudança da língua através dos tempos (variante diacrônica) ou como modalidade regional de determinada localização (variante diatópica), ou como linguagem subpadrão dos indivíduos menos escolarizados (variante diastática), ou como meras alterações entre o escrito e o falado (variante diamésia). Em qualquer hipótese de variação pode-se antever que o vocabulário, a sintaxe e o ritmo da oralidade matuta são também matéria-prima incorporada e trabalhada no diálogo das personagens e na fala do narrador; 2- A expressão marvada carne faz alusão à idéia do desejo pelo qual se pagará um ônus. O que reverbera inconscientemente o pecado original bíblico, que também implicou em renúncia. É a vontade de comida e de companhia (nessa ordem) que mobiliza o protagonista em busca de carne e de mulher. A analogia entre os dois elementos, mencionada por Nhô Quim ao afirmar que "Tava ali as duas coisa em uma só, por lindo nome de Sá Carula", é proposta numa análise sobre o mesmo filme, pelo professor Jaime de Almeida (UnB): "O corpo da donzela se confunde com a carne de gado, oferecidos ambos em casamento, num seqüência encantatória farte de erotismo". Entretanto, essa é uma insinuação que não se desenvolve, pois a fome a que o filme alude, transcende a fronteira sexual, esbarrando adiante numa vontade irracional superior. O que reverte o argumento de uma textura muito mais filosofante do que psicanalítica, aproximando-se mais de Shopenhauer do que de Freud. São referências distintas, porém correlacionadas entre si.
[editar] O narrador
Enumeração de "causos" de inspiração popular
Nhô Quim é o narrador da sua saga. É ele quem reconstitui, partindo dos fragmentos episódicos, a sua trajetória num espaço intemporal e mítico. Desse modo, há dois planos de narração simultâneos: ele invoca o passado em sua apreciação do presente, sem tecer juízo de valores dos seus hábitos da época. Por isso assevera: "Naqueles tempo acontecia muitas coisa". Assim, na memória e a imaginação que não perdem medida lógica em sua efervescência, são o seu fio condutor. Como diz o protagonista que "conversa foi coisa que nunca fartou a esse fio de meu pai", a narrativa se faz numa enumeração de "causos" de inspiração tipicamente popular, que não desautoriza nem destrata o universo caipira. O cômico, o religioso, o folclórico, o anedótico, o festivo, o solidário, o simplório... entre outros retalhos, são alinhavados de modo fluente nos 117 minutos de projeção, cujas imagens, textos e sons evocam (em mim) o que há de melhor na pintura, na literatura e na música do gênero. Não há dúvida de que os quadros de Almeida Jr. foram fundamentais à plasticidade do filme, assim como os contos de Cornélio Pires formam a sua base textual, enquanto os acordes do maestro Duprat resgatam o cancioneiro clássico caipira, principiado com João Pacífico e Raul Torres. Nessa seara de fontes, faz-se necessário mencionar que as páginas de Os Parceiros do Rio Bonito, de Antônio Cândido, foram a sua principal referência bibliográfica. De onde, inclusive, saiu a idéia da alimentação com esse caráter seqüencial de vida (p.36), e que nesta dieta a carne de gado constituiu um índice de elevação social e de urbanidade (p.71). Lembrando ainda que dessas mesma páginas saiu a personagem Nhô Quim (Joaquim Batista de Quevedo, antigo morador da Faz. Bela Aliança, situado em Rio Bonito, atual Bofete - SP).
[editar] A trama
Retrato caipira em projeção existencial
A ´estória´ contada é como e por que ele saiu daqueles idos em que vivia “suzinho e Deu no ermo” para instalar-se no agora. A travessia, então, dimensiona para o espectador a temporalidade histórica (CÂNDIDO, 1977, p.48) de um povo nômade por necessidade, que vivia à mercê da mobilidade exigida pela posse irregular da terra e também pela falta de costume de um trabalho fixo, cuja jornada principia no século XVIII, com as expedições das entradas e das bandeiras em busca e pedrarias e de metais preciosos, e se estende até os dias atuais. De modo que essa travessia tanto pode ser compreendida como a desintegração da genuinidade caipira em face da modernidade, quanto como a pujança da sua identidade que sobrevive num processo de permanente transformação.
[editar] O desenvolvimento
A fome da carne revestida de encantamento
Na primeira cena, Nhô Quim está confinado nos “canfundós”. A solidão e a modéstia da moradia e dos utensílios, deixam entrever que o seu patrimônio não é um bem de raiz capaz de sedimenta-lo naquele mundo. Dá-se pois o primeiro passo para a ruptura, ao abandonar os seus pertences por causa desta jornada. No caminho que segue, ele depara-se com o Curupira, e, no bairro onde chega, vê-se enredado por Sá Carula, moça donzela que chantageava Santo Antônio por causa de um marido. A simpleza desta comunidade está apoiada nos “mínimos vitais”, ou seja, nas minguadas atividades voltadas à sobrevivência dos indivíduos e à coesão do vilarejo. Ela empenha-se no seu propósito; primeiro, adivinhando-lhe os segredos num copo d’água, depois, banhando-se nua no rio para atrapalhar a pescaria e manter faminto o pretendido. Importante notar a rusticidade dos costumes, das crendices e da religiosidade luso-brasileira; bem como a curiosa relação do antagonismo entre nudismo feminino e peixe, lembrando que a mulher metaforiza a síntese do desejo carnal, enquanto o peixe sugere a sua abstinência. É o profano versus o sagrado. Então, o cortejado e seduzido, Nhô Quim principia os preparativos pro casório, construindo em mutirão uma casinha de sapé, para em seguida submeter-se a uma série de provas, a fim de merecer a mão da noiva, que por sua vez não se conforma com tamanha espera. Os destaques aqui são as normas de reciprocidade entre os moradores da comunidade (NEPOMUCENO, 2005, p.56), e o “ajuntamento” dos vizinhos para o grande divertimento da “roda” de fogo: tocar viola, cantar, sapatear e bater palmas. Vale lembrar que foi desse prazer que surgiram as modas de roça. Atualmente tão bem representadas por compositores e intérpretes contemporâneos como Rolando Boldrin, Passoca, Renato Teixeira, Almir Sater, Pereira da Viola, Chico Lobo, Pena Branca etc. O casamento, conforme as regras, foi feito às escondidas. A seguir, a frustração em saber que o boi prometido para a ceia era o “encantado barroso” e não se podia come-lo, só atiçou a desmesura do seu apetite (sonho). Aqui, a carne revestida de encantamento conota a infinitude de um desejo que não pode ser por completo saciado, senão perde-se a vontade do prosseguimento da vida. Assim, mais tarde, Nhô Quim vence uma aposta com o “tinhoso” e rompe de vez com o seu passado de primitivismo medievo-colonial.
[editar] A transição
A passagem do tradicional para o moderno
A substituição da paisagem rural com lendas e ritos arcaicos, mostrada no deslocamento mecânico da locomotiva, e a inserção do contexto urbano com fábricas e gente anônima, é uma alusão a novas melodias, novas palavras e nova paleta. Agora ouve-se O Trenzinho do Caipira, de Villa-Lobos, interpretada por Egberto Gismonti, lê-se O Burrinho Pedrês de Guimarães Rosa, e vê-se Os Operários de Tarsila do Amaral. Essa mudança de ambiência que implica na mudança do repertório fonético, literário e plástico, tendo como base a mesma fonte de referência, é uma forma sui generis de mostragem da adequação do tradicional ao moderno, ou ainda, do avizinhamento do popular com o erudito. Eis aí as matrizes de uma brasilidade que desdobraram-se nas artes depois da Semana de Vinte e Dois. No linear do presente, Nhô Quim encontra-se diante das vitrines com aparelhos de televisão que exibem um rebanho bovinho. Que também poderiam ser cenas de um carnaval com mulatas quase peladas. Entretanto, haveria aí uma convergência óbvia ao sexos, o que não ratificaria a carne como metáfora de um desejo maior. Repare que o boi está dentro da tevê, fundindo-se um no outro, numa equivalência transformadora de um novo símbolo do desejo: a tecnologia. (Que, diga-se de passagem, foi a responsável pela desconstrução da cultura caipira nos moldes tradicionais). Aí permanece horas a fio contemplando o desejado até ser ludibridiado por um malandro citadino, que leva as suas reservas financeiras. O acontecimento que restaura a aposta com o Diabo, ilustra a idéia de que o seu repertório de artimanhas para a sobrevivência deverá ser rarefeito a fim de garantir-lhe a nova estabilidade no mundo contemporâneo e, também que aquele dinheiro maldito não lhe proporcionaria ganhos. O aprendizado não tarda. Depois de trapaceado, participa, ao acaso, de um arrastão que saqueia um supermercado. Corre, enfim, carregando contra o peito um pedaço de filé, feito um coração nas mãos. A velocidade dos passos que tomam posse da cidade e da pulsação desesperadora conseqüente da nova realidade, imprimem no andamento da ação uma outra medida de aceleração que precipita para o desfecho surpreendente. Finda-se a retrospectiva, dissipando quaisquer reminiscências, e num corte brusco, abre-se o presente.
[editar] O desfecho
A pobreza que unifica o bairro rural e a favela
A impressão pelo inusitado da seqüência, é que as próximas cenas são de um outro filme que também principia com a câmara fechada no fogo... desta vez com um pedaço de carne assando. Agora Nhô Quim é um suburbano participando de um churrasco entre amigos; segundo hipótese (SOARES, 2006, p.200), celebrando a construção de mais uma etapa do seu barraco ou do barraco de um vizinho, numa rede de solidariedade parecida com a do lugar de onde viera. Termina aqui a saga de um caipira que troca a pobreza do bairro rural pela pobreza da favela, podendo isso significar também a possibilidade de uma outra leitura, em que a precariedade desses espaços serve de suporte crítico às profundas desigualdades que cicatrizam a sociedade brasileira, cujas misérias denunciam um processo anacrônico de marginalização dos despossuídos. Mas, usando uma expressão típica, esse são outros quinhentos...