Auto da Barca do Inferno
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Se tem algum conhecimento sobre este assunto, por favor verifique a consistência e o rigor deste artigo.
O Auto da Barca do Inferno é uma complexa alegoria dramática de Gil Vicente, representada pela primeira vez em 1517. É a primeira parte da chamada trilogia das Barcas (sendo que a segunda e a terceira são respectivamente o Auto da Barca do Purgatório e o Auto da Barca da Glória).
Os especialistas classificam-na como moralidade, mesmo que muitas vezes se aproxime da farsa. Ela proporciona uma amostra do que era a sociedade lisboeta das décadas iniciais do século XVI, embora alguns dos assuntos que cobre sejam pertinentes na actualidade.
Diz-se "Barca do Inferno", porque quase todos os candidatos às duas barcas em cena – a do Inferno, com o seu Diabo, e a da Glória, com o Anjo – seguem na primeira. De facto, contudo, ela é muito mais o auto do julgamento das almas.
Índice |
[editar] Estrutura
O auto não tem uma estrutura definida, não estando dividido em actos ou cenas, por isso para facilitar a sua leitura divide-se o auto em cenas à maneira clássica, de cada vez que entra uma nova personagem.
[editar] Resumo da Obra
A peça inicia-se num porto imaginário, onde se encontram as duas barcas, a Barca do Inferno, cuja tripulação é o Diabo e o seu Companheiro, e a Barca da Glória, tendo como tripulação um Anjo na proa.
Apresentam-se a julgamento as seguintes personagens:
- um Fidalgo, D. Anrique;
- um Onzeneiro (homem que vivia de emprestar dinheiro a juros muito elevados, um agiota);
- um Sapateiro de nome Joanantão, que parece ser abastado, talvez dono de oficina;
- Joane, um Parvo, tolo;
- um Frade cortesão, Frei Babriel, com a sua "dama" Florença;
- Brísida Vaz, uma alcoviteira (ou proxeneta);
- um Judeu usurário chamado Semifará;
- um Corregedor e um Procurador, altos funcionários da Justiça;
- um Enforcado;
- quatro Cavaleiros que morreram a combater pela fé.
Cada personagem discute com o Diabo e com o Anjo para qual das barcas entrará. No final, só os Quatro Cavaleiros entram na Barca da Glória, pois entregaram a sua vida à luta em nome de Jesus Cristo. Todos os outros rumam ao Inferno, excepto o Parvo que fica no cais, o que nos transmite a ideia de que era uma pessoa bastante simples e humilde, mas que havia pecado. O principal objectivo pelo qual fica no cais é para animar a cena e ajudar o Anjo a julgar as restantes personagens, é como que uma 2ª voz de Gil Vicente.
[editar] Análise
[editar] Sátira Social
Esta obra tem dado margem a leituras muito redutoras, que grosseiramente só nela vêem uma farsa. Mas se Gil Vicente fez a análise impiedosa das moléstias que corroíam a sociedade em que viveu, não foi para se ficar aí, como nas farsas, mas para propor um caminho decidido de transformação.
Normalmente classificada como uma moralidade, muitas vezes ela aproxima-se da farsa; o que indubitavelmente fornece ao leitor/espectador é uma visão, ainda que parcelar, do que era a sociedade portuguesa do século XVI. Apesar de se intitular Auto da Barca do Inferno, ela é mais o auto do julgamento das almas.
[editar] Personagens
As personagens desta obra são divididas em dois grupos: as personagens alegóricas e as personagens – tipo. No primeiro grupo inserem-se o Anjo e o Diabo, representando respectivamente o Bem e o Mal, o Céu e o Inferno. Ao longo de toda a obra estas personagens são como que os «juízes» do julgamento das almas, tendo em conta os seus pecados e vida terrena. No segundo grupo inserem-se todas as restantes personagens do Auto, nomeadamente o Fidalgo, o Onzeneiro, o Sapateiro, o Parvo (Joane), o Frade, a Alcoviteira, o Judeu, o Corregedor e o Procurador e os Quatro Cavaleiros. Todos mantêm as suas características terrestres, o que as individualiza visual e linguisticamente, sendo quase sempre estas características sinal de corrupção.
Fazendo uma análise das personagens, cada uma representa uma classe social, ou uma determinada profissão ou mesmo um credo. À medida que estas personagens vão surgindo vemos que todas trazem elementos simbólicos, que representam a sua vida terrena e demonstram que não têm qualquer arrependimento dos seus pecados. Os elementos simbólicos de cada personagem são:
- Fidalgo: manto e pajem que transporta uma cadeira. Estes elementos simbolizam a opressão dos mais fracos, a tirania e a presunção.
- Onzeneiro: bolsão. Este elemento simboliza o apego ao dinheiro, a ambição e a ganância.
- Sapateiro: avental e moldes. Estes elementos simbolizam a exploração interesseira, da classe burguesa comercial.
- Parvo: não traz elementos simbólicos.
- Frade: Moça e espada. Estes elementos representam a vida mundana do Clero, e a dissolução dos seus costumes.
- Alcoviteira: moças e os cofres. Estes elementos representam a exploração interesseira dos outros, para seu próprio lucro.
- Judeu: bode. Este elemento simboliza a religião judaica.
- Corregedor e Procurador: processos, vara da Justiça e livros. Estes elementos simbolizam a magistratura.
- Quatro Cavaleiros: cruz de cristo simboliza a fé dos cavaleiros pela religião catolica.
[editar] Humor
Surgem ao longo do auto três tipos de cómico, o de carácter, o de situação e o de linguagem. O cómico de carácter é aquele que é demonstrado pela personalidade da personagem, de que é exemplo o Parvo, que devido à sua pobreza de espírito não mede as suas palavras, não podendo ser responsabilizado pelos seus erros. O cómico de situação é o criado à volta de certa situação, de que é bom exemplo a cena do Fidalgo, em que este é gozado pelo Diabo, e o seu orgulho é pisado. Por fim, o cómico de linguagem é aquele que é proferido por certa personagem, de que são bons exemplos as falas do Diabo.
[editar] O Auto da Barca do Inferno e o Inferno anónimo (c. 1515) do Museu Nacional de Arte Antiga
Existe no Museu Nacional de Arte Antiga uma pintura anónima do Inferno que é quase contemporânea do Auto da Barca do Inferno. Poderá precedê-lo em dois anos. É uma pintura de qualidade e contém, como a obra de Gil Vicente, intenção de crítica social. Mas enquanto na Barca assistimos ao julgamento, donde se pode sair condenado ou salvo, a pintura mostra um recanto infernal com danados distribuídos por grupos, recordando talvez o que se passa na Divina Comédia; no auto, as personagens são individuais.
Esta pintura, que Gil Vicente pode bem ter conhecido, remete para o mesmo momento cultural e religioso, até para um semelhante empenho pré-reformista de intervir na sociedade.
[editar] O Auto da Barca do Inferno e os Diálogo dos Mortos, de Luciano
Como Miguel Ângelo há de fazer cerca de 20 anos mais tarde no Juízo Final da Capela Sistina (ver ao fundo do fresco a barca de Caronte), também Gil Vicente construiu a sua alegoria com vários elementos vindos da mitologia, mais em concreto, dos Diálogos dos Mortos, de Luciano.
A intertextualidade entre esta obra e a moralidade de Gil Vicente é clara, de modo particular se considerarmos o Diálogo X. Veja-se como Hermes, sempre satírico como o Diabo vicentino, se dirige ao Filósofo:
- Põe de parte a postura, em primeiro lugar, e depois tudo o mais! (…)
- Deita fora também a mentira, a presunção e o acreditar que és melhor que os outros, porque se embarcares com tudo isso, qual o navio de cinquenta remadores, capaz de te receber?
A recusa de tudo o que podia significar distinção social na vida terrena aparece também no auto, quando lá se fala das «cárregas» inúteis para garantir êxito no julgamento.
A afastar as duas obras, está tudo o que depende da teologia cristã, a começar pela presença do Anjo, com a possibilidade de dois destinos, o da condenação e o da glória, o final esperançoso (claramente visível quando se tem em conta o modo como o autor aproveita a maré ao longo da obra - que está vasa no final, impedindo a ida para o Inferno), e ainda o novo contexto histórico.